quinta-feira, 31 de março de 2011

O fracasso dos colóquios doutrinários com a Fraternidade São Pio X e a questão de um “ordinariato tradicional”


A Comissão Teológica da Fraternidade São Pio X no balcão do Santo Ofício

Os colóquios doutrinários entre a Santa Sé e a Fraternidade São Pio X – isso já não é  segredo para ninguém – estão longe de caminhar no sentido esperado. Os tons entusiastas se apagaram e as belas esperanças parecem definitivamente ultrapassadas, de um lado como de outro. Nos corredores do Vaticano, reapareceu uma expressão que não se ouvia há muito tempo: alguns dizem que “a Fraternidade é um cisma, eles estão fora da Igreja”. E, no entanto, depois de dois anos de discussões regulares, vai ser preciso encontrar uma maneira de sair disso com a cabeça erguida. As soluções possíveis não são muitas e aquela que parece a mais plausível é que, antes do verão, Roma proporá a Dom Fellay que assine um documento, assinatura que será acompanhada da proposta de uma estrutura canônica ideal: a de um ordinariato pessoal com isenção em relação aos bispos diocesanos.

As discussões já duram dois anos agora, mas os esclarecimentos doutrinários e magisteriais sobre o Concílio e o pós-Concílio não avançaram uma vírgula. Entre mil declarações, não se sabe nem mesmo, ainda hoje, se Dom Fellay já aceitou o Concílio, a fim de obter o levantamento das excomunhões: não somente a carta que pedia essa revogação da condenação – embora esta tenha sido acertada, de forma bilateral - nunca foi integralmente publicada, mas dois textos diferentes circulam ainda (sem que ninguém se escandalize disso). No primeiro texto, os quatro Bispos afirmam aceitar todos os Concílios até o Vaticano II, com certas reservas, enquanto na segunda versão, distribuída aos fiéis um pouco mais tarde, eles afirmam, ao contrário, reconhecer apenas os Concílios até o Vaticano I. Roma também não publicou até agora a versão oficial da carta em sua integridade, o que seria, no entanto, um bom ponto de partida para que as posições respectivas sejam conhecidas, sem mal entendidos. Mas no momento prefere-se – dos dois lados – falar de discussões doutrinárias “de alto nível”.

Foi a Fraternidade que pediu encontros doutrinários, dos quais deveria sair uma solução aos problemas criados pelo Concílio Vaticano II. De dois anos para cá, ela aposta na alta, ignorando as propostas de Roma, propostas que não eram tão inaceitáveis como se diz: a Fraternidade não quis se contentar com tornar-se um organismo canônico sui iuris,  com a liberdade de discutir teologicamente sobre certas dificuldades da teologia moderna (e sua influência sobre certos atos oficiais não infalíveis) e a faculdade de celebrar exclusivamente a “Missa gregoriana”. Não, ela pretendeu bem mais, ela quis que Roma se comprometesse no terreno teológico: a Sé de Pedro deveria ter mesmo reconhecido publicamente seus erros diante de seus inferiores, como condição prévia a qualquer eventualidade de um acordo prático. Assim, há dois anos, a Fraternidade alimenta a hostilidade entre seus próprios padres e fiéis, apresentando qualquer acordo que precedesse uma conversão de Roma como uma traição da Fé. Essa política levou a certos resultados – desejados ou não, não é nosso papel julgar – mas é um fato que em 2011 há na Fraternidade mais hostilidade a um acordo que em 2001, logo depois do Ano Santo.

Em 2009 apareceu o projeto dos colóquios doutrinários entre os dois partidos, como quando na Idade Média se afrontavam os partidários de Duns Scoto e os tomistas, mas desta vez, no maior segredo. A Fraternidade se apressou, no entanto, em lembrar que “sobre a verdade não se negocia: não haverá nenhum compromisso”. E ela escolheu seus representantes por um critério que parece mais o da rigidez austera que o da afabilidade diplomática... e os teólogos de Ecône atravessam então os Alpes, em várias ocasiões, para ajudar Roma a se converter. “Nós não vamos a Roma para fazer um acordo, pois não há acordo a fazer entre a verdade e o erro. Roma deve se converter. E quando ela se tiver convertido, aí os obstáculos a um acordo canônico terão desaparecido”. O próprio Dom Fellay nunca se distanciou claramente de tais declarações, cujos autores eram aqueles que ele tinha pessoalmente escolhido para discutir “respeitosamente” com a Sé Apostólica.

Roma, nesse momento, cedeu em relação a essa agenda e se engajou nesses debates teológicos, com intenções mais diplomáticas que científicas, compreende-se facilmente. A conseqüência, que todos podem agora constatar, é que o conjunto da problemática do rito tradicional, e da Tradição em geral, se concentrou sobre o único “caso” da Fraternidade São Pio X, em lugar de consistir em uma ajuda concreta para apoiar canonicamente os que estavam já reconhecidos... O que teria como conseqüência  encorajar, com isso mesmo, a Fraternidade a fazer um processo semelhante. Tal concentração do problema, no fundo,  é aliás menos exigente para Roma, que pode tratar a coisa como se fosse apenas uma desacordo com um grupo de cismáticos turbulentos. Dessa decisão, que traduz todo um estado de espírito, segue-se entretanto, do ponto de vista prático, um desequilíbrio completamente insensato, segundo o qual a Comissão Ecclesia Dei e juntamente todos os que dependem dela, no lugar de ser reforçada e confirmada em suas prerrogativas e sua autoridade,  encontrou-se reduzida a um simples órgão da Congregação para a Doutrina da Fé,  e cuja atividade parece se limitar a favorecer o sucesso dos encontros com a São Pio X, ou mais exatamente, com os mais intransigentes da Fraternidade. Entenda quem puder, mas o resultado é grotesco: toda a “questão tradicional” é hoje suspensa aos caprichos da ala dura da Fraternidade. E os bispos podem tranquilamente não se sentir implicados pelo problema, pois é preciso esperar, dizem eles, que Roma regule definitivamente essa questão.  Ao ponto em que o Osservatore Romano, por exemplo, se permita por em dúvida a ortodoxia dos institutos dependentes da Ecclesia Dei, jogando sobre esses – e sobre ela – o descrédito. A situação está portanto, hoje, ligada às futuras escolhas de Dom Fellay, que após haver desacreditado a solução prática, se encontra assim mestre da situação, bloqueando com isso o desenvolvimento de todos os “traidores” como eles dizem com desprezo, que escolheram se reportar a Roma e que assim naufragaram no terrível “pecado de acordismo”.

A situação, no fim das contas, é um pouco como a de certas guerras infames, em que os mercenários dão tiros de canhão, explodem pontes, ferem o inimigo e depois se retiram para a montanha, deixando os civis à mercê das inevitáveis represálias. A Fraternidade São Pio X atira para matar, de cima das muralhas de sua total independência diante de toda autoridade eclesiástica, em particular a dos bispos.  E seus altivos feitos de armas não tem outras conseqüências que as represálias sobre os Institutos Ecclesia Dei , os quais – devido à escolha que fizeram  - são afinal os únicos vulneráveis, para a maior alegria dos primeiros, que os observam do alto de suas fortalezas. Mas Roma temporiza, sem se preocupar em ajudar os seus, e as respostas são sempre as mesmas: “é preciso ter paciência”, “não é o momento de dar garantias canônicas aos Institutos Ecclesia Dei”... a urgência, para eles, está em outro lugar.

Estamos, portanto, no fim dessas discussões, dois anos passados. Houve conversações, textos e refeições quase simpáticas, mas, evidentemente, nenhuma solução. Nem uns nem outros se converteram. A Santa Sé queria de todo jeito que os textos do Concílio fossem interpretados à luz da Tradição, no sentido de uma evolução homogênea; os outros sustentam, ao contrário, que certas passagens são definitivamente heréticas (ou concedem eles, favens haeresim) e que é preciso, portanto, excluí-las do Magistério, e com elas todo o Concílio que as adotou. Esta seria uma condição sine qua non anterior a qualquer acordo: contentar-se em exprimir reservas teológicas, remetendo o julgamento final à Santa Sé – como fez o Bom Pastor – seria uma traição. Os conteúdos heréticos seriam numerosos, mas jamais uma lista de textos problemáticos foi exposta de maneira definitiva. No fundo, mesmo a Fraternidade sabe disso, os textos em questão pecam bem mais por suas ambigüidades do que por suas heresias. Mas para admiti-lo, seria preciso que eles aceitassem ser taxados de “liberalismo” por sua própria ala dura, segundo o vocabulário que eles mesmos adotaram, adaptando-o à situação.

O fim dos debates não trouxe, porém, nenhuma aproximação: os “romanos” deixam escapar que os teólogos da Fraternidade não tem nível para discutir e que sua formação neotomista os fossilizou nos anos 30. A acusação não carece certamente de fundamento, mas é uma forma um pouco rápida, rápida demais, para evitar de ter que enfrentar os verdadeiros problemas que afligem a Igreja há quarenta anos. Do lado de Ecône, acusam-se os teólogos romanos de estarem de tal forma impregnados de “Nova Teologia” que todas as suas fórmulas, mesmo as mais tradicionais, nunca são aceitáveis já que podem sempre esconder, sob termos acima de qualquer censura, noções traiçoeiramente modernistas... o que as torna tanto mais perigosas. Maneira desonesta igualmente de evitar toda verdadeira confrontação – mesmo que esse julgamento contenha algo de verdade – mas que lhes permite passar, com baixo custo, por defensores sem falhas da ortodoxia.

Chega-se, desta forma, a um impasse por ter pretendido obter uma solução “doutrinária”, em lugar de se contentar de pedir garantias realistas, para poder serenamente realizar o que Dom Lefebvre – de uma maneira bem mais sábia e ponderada – tinha definido como “a experiência da Tradição”. Quis-se fazer mais que o necessário, quis-se “converter Roma”. E agora que Roma não quer se deixar converter, chega-se à beira de uma ruptura, ruptura à qual se dará evidentemente o nome reluzente de “doutrinária”, mas que será, de fato, apenas o resultado de um grave erro de orgulho e de imprudência.

A Santa Sé vai propor, portanto, à Fraternidade um ordinariato pessoal (ou algo equivalente), para tentar sair desse impasse. Então ela deverá escolher, e terá somente duas alternativas, tanto uma quanto a outra melhores do que a terceira, que é aquela do equívoco contínuo.

No primeiro caso, a Fraternidade aceitará o estatuto canônico que lhe é proposto. Sem renegar as justas batalhas que conduziu no passado, ela deverá então definitivamente se separar de certa mentalidade sedevacantista ou galicana, e das tendências de “Pequena Igreja” que ela arrasta após si. Ela deverá também entrar em um novo estado de espírito, no qual os bispos diocesanos não devem ser sistematicamente tratados com desprezo, como se eles fossem automaticamente inimigos da Igreja, somente porque celebram a Missa de Paulo VI. Infelizmente, os últimos acontecimentos na França e as declarações desconcertantes de vários superiores da Fraternidade levam a crer que já é tarde demais para esperar essa mudança de tom. Como quer que seja, isso consistiria em aceitar o acordo prático, ou “canônico” se se prefere, mas em situação bem mais problemática que ontem, à força de ter puxado a corda em todos os sentidos.

Na segunda hipótese, a Fraternidade recusará as proposições do Soberano Pontífice, invocando uma explicação ideal: é impossível chegar a qualquer acordo doutrinário sobre os textos do Concílio. Mas então Dom Fellay deverá, por dever de justiça e por amor da verdade, assumir as responsabilidades de suas escolhas e reconhecer que tal acordo doutrinário – que na época Roma não tinha lhe pedido – fracassou e tornou, por causa de suas próprias exigências, a situação atual bem mais complexa do que era anos atrás. Tal escolha teria, ainda assim, um aspecto positivo: acabar com as ambigüidades e com a linguagem dúplice. Essa seria a posição mais coerente com os últimos posicionamentos no interior da Fraternidade, que após o anúncio de Assis III, da beatificação de João Paulo II e das declarações do Papa sobre o preservativo,  gritam escandalizados e afirmam que a conversão exigida de Roma não se realizou. As coisas se tornariam, nesse caso, mais claras: aquele que quiser permanecer “romano” saberá finalmente o que fazer e não lhe restará outra alternativa que abandonar a Fraternidade às elucubrações sem fim de um zelo inoportuno. Roma dirá que a Fraternidade abandonou definitivamente a Igreja e já está se falando nos últimos dias, em Roma, de atitude cismática. Mas lamentar-se de um cisma não será fácil, quando de fato nunca se tornou possível, de maneira segura e serena, a experiência da Tradição, já que ela nem mesmo foi seriamente tentada com os organismos existentes. A fraqueza de Roma, é verdade, tornou-se crônica, ao ponto que uma norma aplicativa para o Motu Proprio, que deveria sair em janeiro de 2008, fará possivelmente sua aparição na primavera de 2011... mas ao mesmo tempo se esboçam faraônicos projetos de acordo com a ala dura da Fraternidade, quando não se consegue nem  mesmo defender aqueles que já realizaram tal acordo.  Quando se deixa expulsar de uma diocese um Instituto tradicional  reconhecido, pela única razão de que um padre ousou ensinar um pouco de catecismo a algumas crianças; quando o “plano pastoral diocesano” prefere confiar uma paróquia a um grupo de leigos antes que a um padre de batina “porque esse seria assimilado aos lefebvristas”;  quando os grupos estáveis são submetidos a contínuas pressões e interrogatórios que os obrigam a adotar atitudes que eles não aceitam em consciência, a fim de obter (ou por medo de perder) uma “concessão” sempre instável - tudo isso no silêncio geral - fica cada vez mais difícil explicar a pais, a seminaristas e a padres que eles devem abandonar a posição, em certo sentido bem mais confortável e mais fácil, representada pela Fraternidade São Pio X.

Roma deve tomar a iniciativa e não mais aceitar a imposição de uma linha de conduta pelos planos de Dom Fellay. Não está se pedindo o impossível, pede-se apenas a possibilidade de fazer séria, tranqüila e livremente o que Dom Lefebvre chamava “a experiência da Tradição”. Que Roma dê ao menos essa possibilidade àqueles que querem fazê-lo, sob a autoridade do Papa! Aquele que quer combater pelo bem da Igreja é bem vindo: se a Fraternidade se sente envolvida, todos esperam, pela Igreja, seu apoio. Mas é o Vigário de Cristo, e ele apenas, que recebeu de seu Divino Fundador os instrumentos necessários para “salvar a Igreja” na crise que ela atravessa. E não há necessidade, para salvar o “navio que faz água por todos os lados”, daqueles que se acreditam indispensáveis. Mesmo em nosso dever de respeitar antes de tudo o primado da verdade, é sempre a Igreja que nos salva e não é para nós, por mais inflexíveis e puros que possamos ser, o papel de “salvar a Igreja”.
Quinta-feira, 31 de março de 2011

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