domingo, 20 de fevereiro de 2011

Sobre a Instrução relativa ao Summorum Pontificum



O que pensar dos informações publicadas a respeito da publicação iminente de um documento regulamentando o  Motu Proprio Summorum  Pontificum? Nosso  amigo  Padre da Periferia escreveu um excelente comentário a respeito disso.  Aqui estão os textos: o primeiro dirigido a Noticias Católicas e o segundo em forma de resposta a nosso leitor Leonardo, que lhe pediu esclarecimentos.



 Comentário - Sobre a Instrução relativa ao Summorum Pontificum

Em relação à possível Instrução da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei acerca do Motu Proprio Summorum Pontificum, pensando com meus botões, fazia umas considerações que acho serem interessantes serem compartilhadas:
1.      O Motu Proprio Summorum Pontificum é um documento papal de caráter legislativo. Nenhuma Instrução de nenhum dicastério pode ser contraditória com as disposições de um documento desta natureza.
2.      O referido Motu Proprio, ademais, apresenta princípios definitivos: a assim chamada forma extraordinária não é uma concessão, mas um direito dos fiéis; além disso, o Papa declara que o Missal promulgado por João XXIII nunca foi ab-rogado.
3.      Qualquer norma restritiva que for emanada pela Santa Sé deverá ter em conta estes princípios, não contradizendo o magistério papal, o que restringe muito as eventuais restrições que queiram impor ao uso pastoral do Motu Proprio.
4.      Para que a normativa do Motu Proprio seja alterada seria necessário que o Papa escrevesse um documento da mesma natureza (ou outro Motu Próprio) ou de natureza superior (uma Bula, Constituição Apostólica e afins) cancelando o primeiro, o que não parece que acontecerá. No mínimo, o Papa teria de declarar pessoalmente a ab-rogação do Motu Proprio, o que igualmente parece improvável.
5.      Portanto, caso um documento restritivo fosse emanado em contradição com os princípios legislativos estabelecidos pelo Papa no Motu Próprio e não cancelados pessoalmente por ele de algum modo, tais disposições não seriam mais que meras orientações pastorais, carentes de fundamentação jurídica. Todavia, dada a repercussão que os modernistas dariam a tal documento e ao uso que os mesmos fariam dele a despeito da liturgia tradicional, é importante que se manifeste à autoridade competente o desconforto com a notícia ventilada, no intuito de conter até mesmo tal possível iniciativa.

Um Padre da Periferia 




 Consulta - Não bastaria reafirmar a Bula Quo Primum Tempore ?

Reverendo Padre da Periferia, Salve Maria!

Tendo em vista suas considerações acerca do Direito Canônico, gostaria que o senhor nos explicasse qual a situação jurídica da Bula Quo Primum Tempore, de São Pio V. Ao menos ao que parece, ela também é um documento papal de caráter legislativo que contém princípios definitivos e que, até onde sei, também nunca foi ab-rogado (o que nem sei se é possível). No entanto, o Motu Proprio Ecclesia Dei passou por cima de suas disposições, mesmo sendo um documento de natureza inferior. O Motu Proprio Summorum Pontificum, por sua vez, revoga as disposições do Motu Proprio Ecclesia Dei, mas sem fazer qualquer menção à autoridade da antiga Bula, nem ao abuso de autoridade de João Paulo II ao restringir a Missa de Sempre, como se o Ecclesia Dei, apesar de agora revogado, tivesse sido perfeitamente legítimo à época de sua entrada em vigor.

Enfim, tenho a impressão de que o Summorum Pontificum foi o melhor que o Santo Padre pôde fazer diante das atuais circunstâncias, mas que, do ponto de vista estritamente jurídico, toda essa discussão atual sobre a liberdade que se deve dar à Missa de Sempre não tem o menor cabimento, bastando apenas que se reafirmasse o que determinou São Pio V em sua Bula.

Aguardando seu parecer e eventuais correções, se preciso for, despeço-me cordialmente.

Em Cristo,
Leonardo
Resposta - Importante função  do Motu Proprio: reafirmar que o Missal Gregoriano nunca foi ab-rogado
Caro Leonardo,

Salve Maria!

A tua pergunta me exigiria uma resposta assaz longa que eu, infelizmente, não posso entretanto oferecer. Contudo, penso que a questão possa ser abrangida nos seguintes pontos:

a.      A Bula Quo Primum Tempore nunca foi revogada. Quanto à possibilidade de que possa sê-lo, a questão é complicada, pois, de um lado, o magistério supremo do Romano Pontífice pode dispor dos aspectos disciplinares do magistério de seus predecessores; e, de outro, no que possui de doutrinal (e aqui o critério, no que diz respeito à liturgia, é “lex orandi, lex credendi”) o magistério anterior não pode ser revogado. Deste modo, tratando-se do magistério dos papas, penso que o critério não é simplesmente documental (se é uma bula, uma constituição, etc.), mas a vontade eficaz do Pontífice, de qualquer modo manifestada claramente. No caso da Missa, o foco central está na relação entre a lei da oração e a lei da fé e, aqui, o discurso é bastante longo, pois nos remontamos à discussão sobre as fontes do dogma. Em suma, para esta análise se requer muito discernimento, estudo e, sobretudo, que se considere a autêntica mens do legislador.
b.      No entanto, o Papa Paulo VI, com a Constituição Apostólica Missale Romanum, entendia promulgar um Novo Missal, com um Novus Ordo. O problema é que, ao fazê-lo, não deixou textualmente clara a intenção de suprimir o antigo e isto por motivos não declarados (por exemplo, um dos virtuais motivos poderia ser o de salvaguardar o direito a que os sacerdotes anciãos continuassem, então, a celebrar segundo o usus antiquor). Deste modo, a Bula de S. Pio V continuou invicta juridicamente.
c.       Pastoralmente, porém, foi completamente ignorado este status da Bula Quo Primum Tempore, de modo que o antigo Ordo foi integralmente substituído pelo Novo e, ademais, as restrições para que o antigo pudesse ser celebrado foram totais, de modo que os executores da reforma litúrgica concluíram simplesmente que a Bula que promulgava o Missal antigo fora pelo Novo suprimida.
d.     Esta conclusão precipitada e agravada pela prática pastoral posterior foi de algum modo corroborada pelos referidos documentos de João Paulo II, que regulavam limites para a celebração da liturgia tradicional, deixando espaço para alguma liberdade, mas sempre moderada pela autoridade dos Ordinários locais. Neste caso, a corroboração do Papa dá à interpretação restritiva de então o peso do magistério pontifício, naturalmente ainda equívoco.
e.      Com o Motu Proprio Summorum Pontificum a confusão jurídica foi solucionada, pois o Papa Bento XVI, em sua plena autoridade de legislador universal sobre a Igreja, afirmou que o Missal anterior nunca foi ab-rogado e que a celebração da liturgia tradicional é plenamente lícita. Ademais, me parece muito interessante que o status de ordinário dado ao Novus Ordo (designado pelo Papa como “forma ordinária”) seja ali explicado por ele como devido a dois fatores: os novos livros foram aprovados por Paulo VI e acolhidos pela Igreja, em outras palavras, o Papa não fala da promulgação de uma verdadeira liturgia nova, mas de uma nova versão simplesmente aprovada e acolhida pela quase totalidade da Igreja. Isto não me parece despropositado, sobretudo pensando na possibilidade de que a reforma da reforma continue. Deste modo, o Papa Bento XVI, embora não mencione explicitamente a Bula Quo Primum Tempore e não alegue a sua validade jurídica, a pressupõe, pois afirma que o Missal anterior, uma volta promulgado (pela dita Bula, evidentemente) nunca foi ab-rogado (o que coloca todas as conclusões a despeito disso sob o status de abuso jurídico, mesmo que isto não seja explicitamente declarado nem tenha sido admitido ser a intenção específica de seus mentores).
f.        Deste modo, embora o Motu Proprio Summorum Pontificum reconheça ainda uma maior universalidade da forma ordinária (sempre baseada na proposta de Paulo VI e no consenso da Igreja), reconhece igualmente uma estabilidade no uso da forma extraordinária, que continua sendo lícita e sempre acessível ao sacerdote, aos fiéis que requeiram a sua celebração e à admissão daqueles que o peçam para o uso privado. Ou seja, pastoralmente, as restrições práticas e as interpretações indevidas foram dirimidas.
g.      Cito a tua afirmação: «toda essa discussão atual sobre a liberdade que se deve dar à Missa de Sempre não tem o menor cabimento, bastando apenas que se reafirmasse o que determinou São Pio V em sua Bula». De um lado, é exatamente isto que o Papa tem feito: pressupor a Bula de S. Pio V sem a ela referir-se explicitamente, para não dar a impressão de prescindir totalmente do Concílio Vaticano II (uma vez ser ele favorável a uma hermenêutica da continuidade relativamente a este Concílio, por ele considerado plenamente válido); de outro, me parece que toda esta documentação seja necessária por dois motivos: primeiro, a intenção de Paulo VI (o legislador universal de então, pois não admitimos o sedevacantismo teórico nem prático) era a promulgação de um novo missal que reformasse o anterior, ou seja, que lhe substituísse e fosse universalmente acolhido por toda a Igreja, embora não tenha declarado se o antigo pudesse ser integralmente usado, o que foi esclarecido apenas na normativa do Summorum Pontificum; segundo, porque, embora o Missal anterior não tenha sido ab-rogado, a imprecisão legislativa e a prática posterior, corroborada pelo magistério pontifício, davam espaço para que se pensasse deste modo e, por isso, uma intervenção do magistério papal a respeito seria necessária para dirimir a questão, sempre tendo presente que o Papa tem autoridade suprema inclusive para mudá-la.
h.      O problema da polêmica sobre a futura Instrução da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei reside na idéia de que esta pudesse restringir a legislação papal, o que, pelo próprio enunciado da possibilidade, é evidentemente ilógico. Contudo, dada a confusão eclesial presente, a possibilidade de que o ilógico venha à existência não é uma mera conjectura irrealista... Deste modo, considero que seja válido o rechaço a esta idéia maligna pelas próprias conseqüências negativas que poderia acarretar (como a ventilação abjeta que dela fariam os modernistas para fustigar a Missa de sempre).
i.        Um Pontifício Conselho, órgão secundário da Cúria Romana, não tem autoridade de restringir o Papa; nem me parece que seria intenção de seus membros fazê-lo, pois contradiriam suas posições de sempre; nem tampouco isto conviria politicamente para os progressos do diálogo com a FSSPX, no qual o Papa está pessoalmente empenhado (pois, senão, não teria lógica que se submetesse às críticas ferozes que recebeu do episcopado mundial e da opinião pública).
j.        Ademais, a finalidade de uma Instrução é esclarecer pontos dúbios sobre alguma doutrina ou disciplina concreta, de acordo com a mente do legislador. Por isso, não deve apresentar novidades relativamente ao documento a que se refere, mas apenas esclarecê-lo no que há de obscuro ou pouco preciso.
k.      Contudo, em si mesmas, estas restrições, caso se emitissem, seriam apenas indicações pastorais, visto que apenas o Papa teria poder de fazê-lo eficazmente, podendo fazer uso deste como bem entendesse, manifestando como quisesse a sua intenção. Neste caso, uma junção final do texto indicando a ciência do Papa a respeito (como: “o Santo Padre viu e aprovou estas determinações” ou afins) daria a esta Instrução sua incardinação ao Magistério do Romano Pontífice.

Deus te abençoe.
Cordiais saudações,
Padre de Periferia.

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